Por: Mil Oniètó Estudante da Unilab Malês
Marcus Garvey e o Pan-Africanismo: Divergências Ideológicas e a Construção do Nacionalismo Negro
Marcus Garvey é, sem dúvida, uma das figuras mais controversas e influentes da história das lutas negras globais. Reverenciado por muitos como um visionário, mas duramente criticado por outros, Garvey desafiou o status quo e propôs uma rota radical para a libertação dos negros: o retorno à África e a construção de um império africano forte e independente. Contudo, sua trajetória não foi marcada apenas pela resistência ao colonialismo e ao racismo, mas também por intensas disputas internas com outros líderes negros, particularmente os pan-africanistas, que viam suas ideias com desconfiança. Embora o nome de Garvey frequentemente seja associado ao pan-africanismo, ele foi, paradoxalmente, atacado por aqueles que também lutavam por uma África livre. Este artigo investiga esse paradoxo, revelando as tensões entre Garvey e os pan-africanistas de sua época, e explorando a importância do garveísmo para a luta anticolonial e pelos direitos civis ao redor do mundo. Afinal, como pode um homem que sonhava com a liberdade total dos negros ter sido tão criticado por seus próprios pares?
A figura de Marcus Mosiah Garvey é um dos marcos fundamentais no contexto das lutas negras globais do início do século XX, especialmente no que diz respeito ao nacionalismo negro e à luta pela autodeterminação dos povos africanos e afrodescendentes. No entanto, sua relação com o pan-africanismo tradicional é frequentemente alvo de controvérsias, gerando debates que questionam se Garvey, de fato, poderia ser considerado um pan-africano. Alguns líderes e intelectuais pan-africanos da época, como W.E.B. Du Bois, se opuseram veementemente às suas ideias, criando tensões dentro do movimento de libertação global dos negros. Este artigo tem como objetivo analisar a complexidade desse debate, mostrando como Garvey foi criticado por outros pan-africanistas, e, ao mesmo tempo, destacar a importância do garveísmo para as diferentes lutas panafricanas ao redor do mundo.
O Pan-Africanismo e o Nacionalismo Negro de Garvey
O movimento pan-africanista, nascido no final do século XIX e ganhando força no início do século XX, visava unir os povos africanos e seus descendentes ao redor do mundo em uma luta comum contra o colonialismo, o racismo e a opressão. Os primeiros congressos pan-africanos, como o realizado em Paris em 1919 sob a liderança de W.E.B. Du Bois, estavam focados na integração e na cooperação entre africanos e afrodescendentes, tanto no continente quanto na diáspora. Entretanto, Marcus Garvey, com sua fundação da Universal Negro Improvement Association (UNIA), em 1914, apresentou uma abordagem diferente, mais radical e separatista, que gerou divergências profundas com outros pan-africanistas.
Garvey defendia que os negros só encontrariam verdadeira liberdade se retornassem à África e reconstruíssem uma nação forte e independente. Sua filosofia era profundamente centrada no conceito de nacionalismo negro, onde os negros deveriam criar suas próprias instituições, seus próprios negócios e sistemas de governo, livres da influência e do controle dos brancos. Ele acreditava que a opressão dos negros no Ocidente era insolúvel dentro dos sistemas europeus e americanos, propondo a criação de um império africano, governado e administrado por negros.
Para Garvey, "África para os africanos, em casa e no exterior" era mais do que um slogan, era uma estratégia concreta de emancipação. Seu esforço culminou na tentativa de criar uma companhia de navegação, a Black Star Line, para facilitar o transporte de afrodescendentes de volta ao continente africano. Entretanto, essa proposta utópica foi vista com ceticismo por muitos líderes pan-africanos da época, que preferiam lutar por melhorias dentro das sociedades onde já estavam inseridos.
A Oposição Pan-Africanista a Garvey
A divergência entre Garvey e outros pan-africanistas, especialmente com W.E.B. Du Bois, é um dos momentos mais conhecidos dessa tensão. Du Bois, que defendia a ideia de um "talento de décima", ou seja, a elevação de uma elite negra educada que lutaria por igualdade dentro das sociedades ocidentais, via a proposta de Garvey como ingênua e irrealista. Du Bois chegou a criticar duramente Garvey, chamando-o de "o maior inimigo da raça negra" . Para Du Bois, a ideia de repatriamento em massa era impraticável, e ele defendia a integração dos negros nas sociedades onde já estavam estabelecidos, acreditando que a luta por direitos civis deveria ocorrer dentro dessas nações.
Garvey, por sua vez, não recuou em suas críticas. Ele acusou intelectuais como Du Bois de estarem demasiadamente próximos dos brancos e de perpetuarem uma mentalidade subserviente. Sua visão era de que os negros precisavam de autonomia completa, e essa postura mais confrontadora isolou Garvey de muitos dos pan-africanistas tradicionais. O conflito entre Garvey e Du Bois simboliza a luta entre duas visões de libertação: uma focada na autonomia e separação, e a outra na integração e colaboração com as estruturas existentes.
A situação se intensificou quando Garvey foi preso nos EUA, acusado de fraude na administração da Black Star Line. Muitos de seus opositores, incluindo Du Bois, não apenas apoiaram a condenação, mas também colaboraram com o governo americano em investigações contra Garvey. Esse episódio destaca como os conflitos internos no movimento pan-africano chegaram ao ponto de se tornarem divisões que prejudicaram a unidade da luta global pelos direitos dos negros.
Peculiaridades do Pan-Africanismo e a Contribuição do Garveísmo
Apesar dessas diferenças, é fundamental entender que o pan-africanismo não é um movimento monolítico. Como destaca Anin Urase, em seu blog Pensamento Mulherista, há uma diversidade de interpretações e enfoques dentro do pan-africanismo, sendo Garvey uma das expressões mais peculiares dessa filosofia . Urase argumenta que Garvey trouxe à tona uma forma de resistência que transcendia as fronteiras intelectuais do pan-africanismo tradicional, propondo uma ação direta que inspirou movimentos ao redor do mundo, mesmo sendo criticado pelos seus contemporâneos.
Urase observa que o nacionalismo de Garvey acabou influenciando lutas panafricanas de diferentes formas. Movimentos como o de Kwame Nkrumah, em Gana, e Jomo Kenyatta, no Quênia, que lideraram a luta pela independência de seus países, reconheceram a importância do garveísmo na construção de uma identidade africana autônoma. A proposta de uma África forte, centralizada e independente que Garvey defendia encontrou eco na luta anticolonial que floresceu nas décadas de 1950 e 1960.
A abordagem de Garvey também serviu de inspiração para movimentos de libertação na diáspora. O Movimento Rastafári, por exemplo, com sua visão de repatriamento e sua reverência à figura de Haile Selassie, carrega influências diretas do garveísmo. A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos também viu ecos das propostas de Garvey, especialmente no Movimento Black Power, que reivindicava a criação de instituições negras e a rejeição da assimilação dentro da cultura branca dominante.
A Importância do Garveísmo para as Lutas Pan-Africanas
Embora Garvey tenha sido criticado por pan-africanistas contemporâneos como Du Bois, sua contribuição para as lutas negras globais não pode ser subestimada. Garvey ofereceu uma perspectiva única de libertação, que focava na separação e na construção de uma África independente. Sua visão de autossuficiência, de orgulho negro e de resistência à opressão colonial e imperial foi fundamental para inspirar gerações de ativistas em todo o mundo. Mesmo que suas táticas e propostas não tenham sido aceitas universalmente, o garveísmo influenciou significativamente a luta panafricanista e moldou a forma como os negros passaram a se ver, tanto no continente africano quanto na diáspora.
Conforme afirma Anin Urase, "o garveísmo representa uma dimensão do pan-africanismo que desafia a subserviência intelectual e o compromisso com o status quo, ao mesmo tempo em que reivindica a criação de uma nova ordem política para os africanos" . É nesse sentido que o legado de Marcus Garvey permanece vivo, não apenas como um precursor do nacionalismo negro, mas como um dos pilares fundamentais das diferentes formas de luta pan-africana.
A análise das tensões entre Marcus Garvey e outros pan-africanistas, como W.E.B. Du Bois, revela as múltiplas facetas do movimento pan-africano. Enquanto Garvey foi frequentemente criticado por suas propostas separatistas, sua influência nas lutas de libertação africanas e na diáspora não pode ser ignorada. O garveísmo trouxe uma nova dimensão ao pan-africanismo, colocando a ênfase na autonomia completa e no retorno à África como uma solução definitiva para a opressão racial. Apesar de suas divergências com outros líderes, Garvey permanece uma figura central na história das lutas negras globais, cuja visão continua a ressoar nas lutas contemporâneas pela liberdade e pela justiça racial.